Em interessante estudo desenvolvido para concorrer ao cargo de professor titular da Universidade Federal de Pernambuco, traçando uma análise da grande carga de simbolismo presente na Constituição dos países periféricos, Marcelo Neves comenta que muitas leis são aprovadas com a principal intenção de demonstrar que o Estado detém a capacidade de enfrentar os problemas sociais (A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007). Trata-se da “legislação-álibi”, da qual recebemos um típico exemplo recentemente.
Refiro-me à Lei 12.965/2014, aclamada como “Marco Civil da Internet”, em vigor desde a última terça-feira, após o escoamento do prazo de 60 dias previsto para o início da sua vigência. A “legislação-álibi” dá ao Estado a imagem de um sistema jurídico e político que responde com rapidez e eficiência aos reclames da sociedade, servindo para iludi-la na mesma toada que imuniza o governo das alternativas cogitadas popularmente, mas que lhe incomodam. Desempenha, então, uma função ideológica e dá uma sensação de bem-estar geral.
A lei em questão reúne normas vazias, salvo raras exceções, estabelecendo regras sobre as relações pertinentes ao uso da internet onde já havia regramento suficiente. Lembremos que a aprovação do então projeto de lei, cujo texto original foi encaminhado ao Congresso Nacional em 2011, ocorreu meses após as revelações do ex-funcionário da CIA, Edward Snowden, acerca da sistemática espionagem de brasileiros por meio do programa Prism, com a colaboração de Facebook, Google e Microsoft.
Como essas circunstâncias são recentes, a memória nos auxilia e estamos dispensados de nos estender quanto a esse escândalo pós-moderno da espionagem, que até James Bond invejaria. A realidade é que a legislação recém-nascida ganhou vida depois de longa gestação, com um pré-natal acompanhado de perto por internautas ― que inclusive tiveram chance de opinar pela sua modificação em alguns pontos ―, mas calhou de vir à luz com a missão não declarada de que livraria os brasileiros e seus representantes dos assaltos cibernéticos de espionagem.
De fato, o “Marco Civil” não resolve o incidente diplomático instaurado nem goza de perspectiva de eficácia. Abana o incêndio, dispersa a fumaça e transfere a solução do conflito para um futuro indeterminado.
Corremos o risco assumido de contrariar especialistas e acalorados defensores da nova criação legislativa; mas não nos iludimos. Uma efetiva inovação na regulação do uso da internet seria atingida com bem menos que os seus 32 artigos.
Há regras que se salvam dessa crítica, como a inviolabilidade e sigilo das comunicações privadas armazenadas (art. 7º, III), que interfere, em certo aspecto, na tese amplamente debatida pelo Supremo Tribunal Federal quanto à inviolabilidade absoluta de dados de computador ― até então preponderava no STF a interpretação de que o art. 5º, inciso XII, da Carta Constitucional, apenas cobriria com seu manto protetor o sigilo da comunicação de dados, e não os dados em si, estáticos, armazenados (RE 418.416, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 10/05/2006, Plenário, DJ de 19/12/2006).
Também inovou ao incluir em um texto legal a proibição do fornecimento dos dados pessoais do consumidor a terceiros (art. 7º, VII), a exclusão definitiva desses dados quando encerrada a relação comercial entre as partes (art. 7º, X) e a promoção da ampla acessibilidade do usuário (art. 7º, XII).
Mas, seus grandes destaques são mesmo (1) a “neutralidade da rede”, impedindo os provedores de internet de ofertar conexões diferenciadas pelo conteúdo que o usuário acessar, como e-mails, vídeos ou redes sociais (arts. 9º e seguintes); (2) a responsabilidade subsidiária, e não solidária, do provedor de aplicações de internet que disponibilizar conteúdo gerado por terceiros que agrida a intimidade de seus participantes (art. 21); e (3) a preocupação com a inclusão digital e o controle pelos pais do conteúdo acessado por crianças e adolescentes (art. 29).
Quanto ao mais, temos que convir que a inviolabilidade da intimidade e da vida privada; a indenização em caso de ofensa à personalidade; a previsão da suspensão da conexão à internet apenas em caso de débito associado à sua utilização; a manutenção da qualidade contratada da conexão; e a prestação de informações contratuais claras e completas sobre os serviços de coleta, uso, armazenamento, tratamento e proteção de dados pessoais são “letra morta” à vista do que já diziam o inciso X, do art. 5º da Constituição Federal de 1988; a cabeça do art. 12 do Código Civil, o art. 21 do mesmo Código Civil; o art. 22, a cabeça do art. 31, o parágrafo 1º do art. 37, e os incisos III a VII e IX do art. 39, todos do Código Consumerista…
O episódio se repete com a faculdade de o consumidor requerer ao juiz que ordene ao provedor o fornecimento de registros de conexão ou de acesso a aplicações de internet (art. 22). Bastaria se reportar à disciplina da produção antecipada de provas, contemplada no Código de Processo Civil.
Diga-se o mesmo quando preconiza que as causas poderão ser apresentadas perante os juizados especiais e ter antecipados os efeitos da tutela pretendida (art. 19, §§ 3º e 4º). Esqueceram da Lei 9.099/95 e o instituto da antecipação da tutela…
De todo modo, parece que o “Marco Civil” cumpriu bem o seu objetivo, já que não se fala tanto da velada incursão em e-mails e documentos eletrônicos de autoridades brasileiras. Ou a razão disso está nas poucas entrevistas que Edward Snowden tem concedido à imprensa…?