Essa receita é simples! Você pode obter um prato suculento e servi-lo na sua casa, aos seus ilustres convidados. São três os ingredientes básicos que darão vida ao nosso Cassoulet, uma especialidade francesa trazida à mesa brasileira. Aliás, tem tudo de brasileiro na receita, pois o próprio nome do prato tem origem no preparo do feijão, deixado de molho algumas horas antes do seu cozimento em fogo baixo, numa caçarola de barro! Ah! Daí o Cassoulet ou feijoada branca, conforme foi batizado por aqui!
Uma explicação para aguçar o apetite: a fotografia que encima o post não é a imagem do nosso acepipe. É só para temperar o diálogo!
Pois bem, na modesta cozinha tem feijão branco, linguiça calabresa e bacon? Então vai dar um bom Cassoulet! Os grãos de feijão branco ficam de molho, como dito, de modo que fiquem todos cobertos por pelo menos 6 horas. É melhor deixar logo de um dia para o outro. Numa panela de pressão, a linguiça calabresa cortada em meia rodela, com o tempero a gosto do mestre cuca, é refogada até dourar. O feijão se une à linguiça sob o mesmo vapor da panela, cozinhando em fogo baixo pelo tempo que o cozinheiro diligente imaginar. Dá para sentir o cheirinho escapando… Em paralelo, noutra borda do fogão, o bacon é frito com os condimentos que darão o toque especial do chef.
Dá pra ouvir o estalido da língua no céu da boca, mas ainda não acabou! Antes de desejar o bon appetit aos convivas, o feijão, a linguiça e o bacon vão se encontrar num vasilhame fundo. E a história realmente começa aqui. Acrescentando uma farofa da hora ao Cassoulet, temos o Brasil! De molho, o feijão branco se preparava para a miscigenação. Os ingredientes aferventados na panela de pressão são os sabores das etnias do provo brasileiro. Portugueses, silvícolas, campineiros, negros; invasores, dominadores, nativos ou traficados coexistem na luta escaldante do calor tropical. As especiarias que o cozinheiro preferiu respondem pelo contingente europeu, árabe e japonês que à mesma panela brasilis aderiu.
Mas a mistura vitoriosa da nação somente virá com uma forma peculiar de mexer e remexer. Somente neste ponto se faz o Brasil. Diferentemente das iguarias norte-americanas, a colher de pau fará um movimento de dentro para fora, de dentro para fora, em espirais partindo do centro do vasilhame para a sua beirada. Repita, repita bem! Chamamos isso na melhor culinária de federalismo centrífugo ― um modelo gastronômico de três esferas de governo, mas ainda bastante centralizado porque, não nos esqueçamos, o ingrediente mor, que esteve de molho à espera da mistura, é o feijão branco.
Darcy Ribeiro, um grande degustador do Cassoulet da nossa receita, preparado no fogão de quatro bocas que carinhosamente apelidamos de Antropologia, Sociologia, Direito e Política, foi, elaborou a seguinte conclusão com o paladar apurado:
“A unidade nacional, viabilizada pela integração econômica sucessiva dos diversos implantes coloniais, foi consolidada, de fato, depois da independência, como um objetivo expresso, alcançado através de lutas cruentas e a sabedoria política de muitas gerações. Esse é, sem dúvida, o único mérito indiscutível das velhas classes dirigentes brasileiras. Comparando o bloco unitário resultante da América portuguesa com o mosaico de quadros nacionais diversos a que deu lugar a América hispânica, pode se avaliar a extraordinária importância desse feito.
Essa unidade resultou de um processo continuado e violento de unificação política, logrado mediante um esforço deliberado de supressão de toda identidade étnica discrepante e de repressão e opressão de toda tendência virtualmente separatista. Inclusive de movimentos sociais que aspiravam fundamentalmente edificar uma sociedade mais aberta e solidária. A luta pela unificação potencializa e reforça, nessas condições, a repressão social e classista, castigando como separatistas movimentos que eram meramente republicanos ou antioligárquicos.”
(O Povo Brasileiro – a Formação e o Sentido do Brasil)
Mas, o que se passa quando um punhado à parte do nosso Cassoulet tem um sabor ácido, que não se identifica com o sabor de agrado geral?! É a mesma pergunta que se faz quando surge a Lei 6.613/2013 do Estado do Rio de Janeiro, instituindo o Livro de Reclamações de forma obrigatória e destoando da homogeneidade do prato nacional. Toda lei regional ou local que verse sobre assunto da competência legislativa da União agride a saliva e a unidade federativa.
Não se trata de um gosto apimentado de que somente um dos que se servirem pode provar. Se é matéria consumerista, não se pode usurpar a colher da mão do cozinheiro. Ainda mais quando a exigência da “existência e disponibilização do Livro de Reclamações em todos os estabelecimentos de fornecimento de bens ou prestação de serviços sujeitos ao Código de Defesa do Consumidor” fere a liberdade da atividade econômica sob os aspectos da adequação, necessidade e proporcionalidade, bastando consultar a maior enciclopédia de receitas, em seus arts. 24, caput, V, e parágrafo 2º, e 170, parágrafo único.
Não que o Cassoulet à la brasileira seja o prato dos sonhos. Seu preparo não é o ideal, nem o mais justo. Sua receita é mais humana que divina. Mas uma pitada de vinagre inconstitucional azeda toda a arte culinária!