No último domingo conversava com meu irmão a respeito dos filmes da série Matrix e tentávamos conciliar interpretações. A existência de uma realidade virtual criada por máquinas, onde supostamente viveríamos, mas, a rigor, seríamos explorados, tendo nossa energia usurpada para uma finalidade desconhecida… Lançado há mais de 15 anos, o primeiro dos longas ainda deflagra discussões abertas e crava de dúvidas seus mais fiéis admiradores.
Meu irmão e eu estávamos distantes de um acordo, como necessariamente tiveram que alcançar os irmãos Wachowski, roteiristas e diretores da trilogia. Mas conseguíamos fazer do questionamento de um a incerteza dos dois. Tenho poucas recordações da infância, mas me lembro sem muito esforço de que, ainda pequenos, buscávamos ardentemente uma explicação globalizante, que respondesse a todos os dilemas humanos. Uma teoria de tudo ― sem querer confundir os filmes. Por isso mesmo, transitamos entre tantas religiões e tomamos rumos sob uma espécie de agulhadas na razão.
À medida que ele falava sobre uma representação do mundo das ideias de Platão, como a autêntica realidade dos homens, que estaria fora do grande sistema operacional Matrix, em que transitavam homens e mulheres em sua frenética human race, eu contra-argumentava com outra leitura do filme. Via em Matrix o mundo das ilusões de Sidartha, o Buda, no qual todos deveríamos nos precaver das ciladas que poderiam nos prender ao que era somente transitório.
De uma forma ou de outra não apontávamos nenhum erro no que o outro dizia. De certa maneira nos completávamos. Nosso pai, a quem fomos visitar e em torno de quem começamos a conversar, sorrateiramente nos deixou a sós a falar, dado o fervor com que queríamos nos fazer entender e convencer, como velhas crianças.
Smith, então, certamente seria um vírus, indesejado por hardwares e softwares. Nesse ponto não houve debate. Meu irmão dominava o assunto e se referia à humanidade como um conjunto de aplicativos a serviço dos computadores. Tive chance, porém, de pedir um pouco mais de lógica e clareza, já que a fusão de hard e softwares, no dia-a-dia, atende ao ser humano. E na metáfora de Matrix, a quem serviria? Pausa pra pensar… “Ao Arquiteto” ― respondemos juntos, em uníssono, com um detalhe: ele perguntou e eu afirmei.
Sim, ao Arquiteto. Ele representaria Deus na saga cyberpunk. Marlos ― embora a bem poucos possa interessar, já é hora de dar um nome ao meu irmão, tão esquisito quanto o meu. Talvez meus pais estivessem com a cabeça em Matrix quando decidiram registrar nossos nascimentos ― Marlos não se conformava com um deus ou o Deus na história, pois o homem, quando utiliza seu PC, não está dentro do computador. Mas quem disse que ele entrou? Seria apenas a sua imagem ou sua personificação, como ocorre quando nos comunicamos e nos vemos pelo monitor. Agora era eu quem movia a rainha e dava o xeque-mate. “E quanto ao Neo?” ― se ele me perguntou é porque eu já andava vencendo a queda de braço. “Neo é a alegoria do Salvador” ― não titubeei, mas essa conclusão advinha das muitas vezes que assisti Matrix Revolutions, o último dos filmes. Após uma hecatombe final, quando Neo e as infinitas multiplicações de Smith (na imagem que encabeça este post) parecem provocar uma fissura nuclear, as máquinas erguem o corpo vencido do protagonista e a cena seguinte mostra o herói de braços abertos, envolto num halo luminoso. Um pouco adiante há um encontro entre o Arquiteto e o(a) Oráculo, tendo ao fundo a plácida imagem do raiar do sol. Tinha início uma nova era e eles conversam sobre o quanto duraria a paz após o sacrifício de Neo. Nesse momento o silêncio se fez mais duradouro.
No auge da nossa insanidade e das disputas filosóficas, concluímos, sem nos olharmos, que só desejamos a paz quando não a temos. Toda aquela luta, perseguição, tiroteio e desvio de balas de Matrix tinha na paz a sua grande finalidade.
Sem trocar uma palavra, levantamos na mesma fração de segundo ― o relógio da cozinha marcava 18:47 horas; havíamos imergido naquela discussão por exatos 51 minutos, desde as 17:56 horas ― e fomos bater papo com o nosso pai, ainda convalescente de uma cirurgia e de uma infecção urinária. Como epílogo daquele fim de tarde e início de noite, nossa loucura não nos impediu de amar.