Quando surgem sumidades, quando se têm homens públicos, quando, em geral, conhecemos pessoas na fase adulta, nos escapa à observação imediata o fato inevitável de que todos já foram crianças. Se esse descuido é comum, nossa distração é ainda maior com relação a quem protagonizou sua formação, lapidação e burilamento do caráter, do talhe intelectual, do seu gosto pelo sublime ou pelo trivial.
Quando focamos Ruy Barbosa, seu entorno se turva e somente sua obra centraliza nossa atenção. Sua notabilidade como jurista, diplomata, político, orador, escritor, tradutor etc. ofusca tudo mais, que se torna passivamente secundário… Republicano, federalista, abolicionista, fundador e imortal da Academia Brasileira de Letras, o “Águia de Haia” representa a grandeza exponencial da cultura nacional.
Mas Ruy Barbosa teve um mestre que o desafiou! Ernesto Carneiro Ribeiro, médico, professor, linguista e educador brasileiro, travou acirrada disputa com seu pupilo, quando este já era crescido. Debateram sobre a revisão ortográfica do Código Civil Brasileiro.
Carneiro Ribeiro, nascido a 12 de setembro de 1839 na Ilha de Itaparica e diplomado em Medicina em 1854, fundou o Colégio da Bahia em 1874 e, dez anos depois, o conceituado educandário que carregava seu nome.
No primeiro governo do seu estado natal após a proclamação da república, participou da comissão convocada pelo governador Manoel Vitorino, visando a elaboração de um plano de ação educacional.
Em 1902, foi incumbido pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores, José Joaquim Seabra, de realizar a revisão do Projeto de Código Civil de Clóvis Beviláqua, que substituiria a legislação obsoleta e esparsa das Ordenações Filipinas.
À época, Ernesto Carneiro já havia publicado dois grandes monumentos linguísticos: a Gramática Portuguesa Filosófica, de 1881, e os Serões Gramaticais, de 1890, representando, respectivamente, a visão histórica da Língua Portuguesa, arraigada à sua tradição que descende do século XVII, e o aspecto científico de nossa língua máter, num esforço de fidelidade à origem vocabular, remontando ao que seria a protolíngua.
Voltando a 1902, encontramos Ruy Barbosa na presidência da comissão do Senado instituída para o estudo do trabalho de Beviláqua. Apresentou seu parecer em três dias, contendo 560 páginas de severas críticas ao projeto legislativo. No “Parecer do Senador Ruy Barbosa sobre a Redação do Projeto do Código Civil”, publicado pela Imprensa Nacional em abril, questionava a filologia do texto, qualificado de “obra tosca, indigesta, aleijada”.
Sabe-se que Ruy Barbosa foi um inveterado admirador da política e do direito norte-americanos. A primeira Constituição da República Federativa do Brasil, de 1891, é aclamada como “Constituição de Ruy Barbosa” porque, além de responsável por tecer grande parcela do texto constitucional, esculpiu no seu título os dizeres “Constituição da Republica dos Estados Unidos do Brazil”.
Pois bem, no mesmo ano de 1902, o emérito filólogo, mestre de Ruy e também de Castro Alves, procede, em quatro dias, à revisão gramatical do projeto, apresentada na obra “Ligeiras Observações sobre as Emendas do Dr. Ruy Barbosa ao Projeto do Código Civil” e publicada no Diário do Congresso em outubro de 1902. O embate ainda se estenderia no tempo com a “Réplica” de Ruy, que contrapunha:
“Se a lei não for certa, não pode ser justa: ‘Legis tantum interest ut certa sit, ut absque hoc nec justa esse possit’. Para ser, porém, certa, cumpre que seja precisa, nítida, clara. E como ser clara, se for vazada nos resíduos impuros de um idioma de aluvião? Se não se espelhar nessa língua decantada e transparente, que a tradição filtrou no curso dos tempos? Aspirar à clareza, à simplicidade e à precisão sem um bom vocabulário e uma gramática exata seria querer o fim sem os meios. A lucidez no estilo das leis ‘depende, a um tempo, da lógica e da gramática’, diz Bentham, ‘ciências que é mister possuir a fundo, para dar às leis redação boa’.”
Em 1905, veio à lume a tréplica de Carneiro Ribeiro. 899 páginas formavam “A Redação do Projeto do Código Civil e a Réplica do Dr. Ruy Barbosa”, defendendo a normatização de peculiaridades do idioma português falado no Brasil, o que fazia do filólogo um pioneiro no assunto.
Em 1º de janeiro de 1916, finalmente seria concebida a Lei 3.071 ou “Código Civil dos Estados Unidos do Brasil” ― again!
Ruy Barbosa ficou gravado na História. Mas teve um mestre que engradeceu sua trajetória!