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Mais que um felino domesticado!

Conta-se que na década de ’70, uma comitiva sul-coreana esteve em Brasília para assistir de perto o “Milagre Brasileiro”, ou o badalado crescimento econômico de então. Ali, sim, concluiriam os visitantes, havia mais bravata que realidade. Após as cerimônias de apresentação da “fase de ouro” da economia brasileira, os coreanos do sul conheceram o setor automobilístico, siderúrgico, petroquímico…

Finda a excursão, os asiáticos entreolharam-se por longos minutos até questionarem, com a ajuda de um tradutor, se alguma parcela importante da indústria brasileira havia sido esquecida. Diante da resposta negativa, os olhos puxados voltaram a se encontrar para lamentarem com indignação que percorreram meio-mundo para saber melhor sobre fabricação, e o que lhe mostram não foi além de simples montagem…

Pouco mais de 30 anos, do Brasil seguia um ansioso grupo de empresários em direção à Coréia do Sul. Na liderança dos aclamados “Tigres Asiáticos”, a terra natal das multinacionais Hyundai, Kia, LG e Samsung abalava o eixo das superpotências do Ocidente. O voo teve um atraso e os empreendedores brasileiros, que intencionavam ficar pouco tempo no país, seguiram direto para a universidade que os abrigaria naquela rápida pesquisa de campo.

Chegaram às altas horas no campus e estranharam o profundo silêncio em contraste com a grande luminosidade do local. Longe de alguém que pudesse entender o seu português, a turnê empresarial conversava entre si sobre o possível bacanal que encontraria na madrugada dos estudantes coreanos. Perceberam, atônitos, que os dormitórios eram os únicos ambientes em que as luzes estavam apagadas, enquanto que salões e corredores brilhavam intensamente. Avistaram uma sala repleta de universitários mudos, quietos e debruçados sobre carteiras e mesas redondas. Passaram por outra sala ― a mesma cena. Outra e mais outra, e estavam entre o encanto e o susto!

Poderiam terminar ali sua observação em terra estranha, mas tiveram a felicidade de conhecer o fenômeno asiático pela sua causa. Souberam que ciência & tecnologia, propriedade intelectual e inovação são disciplinas obrigatórias na grade curricular das escolas. Talvez alguém tenha pestanejado; portanto reitero: “grade curricular das escolas”! De semicondutores para minicircuitos de aparelhos móveis a pesadíssimos navios de carga de fácil flutuação, a tigrina economia sul-coreana enfrenta as mais selvagens forças capitalistas da savana global!

De volta ao Brasil, o desolado comitê, ainda no aeroporto, foi recebido por seus funcionários, ávidos por novidades que lhes fizessem alavancar de vez vendas e produções. Antes que o primeiro dos empresários pudesse transmitir as surpreendentes notícias ― que, reconheciam, não poderiam ser outras para justificar o salto econômico daquela pequenina nação, um tanto só maior que Santa Catarina ―, o mais destacado dos empregados ali presentes, pós-doutor em biotecnologia, se adiantou para dizer que, enquanto seus chefes viajavam, ele fez uma grande descoberta: um grande engenho da companhia poderia ser comercializado! Bastaria que depositassem o pedido de patente junto ao escritório brasileiro de propriedade industrial, o INPI!

Sem que combinassem a ação, juntos os empresários deram as costas para a seleta agremiação de recepção. Pelo olhar arregalado se comunicaram nessas palavras, sem som, sem pontuação: um brasileiro pós-doutor em biotecnologia chegou à mesma conclusão de uma criança coreana estudando biologia em sala de aula! E mal sabe que o registro da patente será concedido por aqui em 10 anos ou mais, enquanto na Coréia, em até 5 anos…

Voltando-se ligeiros para a turma animada, que dava tapinhas no ombro do avançado pós-doutor, resolveram falar sobre as curiosidades da cultura coreana. Religião, culinária, vestuário, higiene… Todos riam à vontade! Alguns da própria desgraça; outros da ignorância ignorada!

Arrastando um corpo ciclópico de 5 séculos de existência, um pacato dragão de escamas verd’ouradas teve sua sanidade mental drasticamente afetada desde que, em sua seiva sanguínea de cor branco-anil, foram injetadas substâncias alucinógenas, recolhidas de ampolas importadas de distantes países. Quem lhe aplicava o fármaco dizia pretender curar o manso dragão da passividade imposta pelos últimos 20 anos em que esteve preso a continentais bolas de chumbo e de repressão, afora os séculos em que foi bestializado pela exploração inescrupulosa de quem deveria cuidar-lhe.

O medicamento, de fato, fez o grande dragão abrir suas longas asas e encher os pulmões, arfando a longos haustos, num ritmo em que se ouvia, com nitidez, “Liberdade! Liberdade!”. Sobre a sua cabeça fizeram pender uma coroa com as inscrições “Estado Democrático de Direito”. No peito, foi envergada uma faixa em que se lia “Carta Cidadã de 1988”. O efeito estimulante das injeções não tardou a se evidenciar. O verd’ouro das escamas reluzia!

Houve um ato voluntário ou realmente esqueceram que a diferença entre o remédio e o veneno está na dose. Afirmam alguns que numa das ampolas da suposta vacina ministrada no réptil alado pendia o rótulo “pluripartidarismo”. Seja como for, desde as espetadas logradas com enormes mastros de aço — que de nada mais serviam pois suas bandeiras já não balouçavam —, o majestoso dragão, embora capaz de voar, não coordenava os movimentos. Era como se uns subissem a suas costas dissolvendo os planos de voo em execução e ditando novos rumos, enquanto outros lhe atassem embaixo sem compromisso com uma estratégia para decolar…

Mesmo com a pretensa vacina, algum verme estupendo se instalou em suas vísceras, tendo sido diagnosticada uma inflação devoradora. Vários tratamentos foram improvisados até que, em 1994, há exatos 20 anos, foi elaborado um ansiolítico ou mero tranquilizante, cujos efeitos, por perdurarem mais, deram a entender que fora encontrada a cura, chamada de Plano Real.

Foi possível perceber as melhoras. O monstruoso organismo parecia ter recuperado a saúde. Ainda não cuspia fogo, era verdade, mas já exalava algumas baforadas de fumaça pela bocarra, entre a arcada dentária de respeito. Ainda não se podia voar, outra verdade, mas o congelamento dos preços, corrigidos diariamente pela Unidade Real de Valor – URV, e a valorização da taxa de câmbio livraram o intestino da verminose.

Contudo, sorrateiramente, se insinuava o quadro alucinatório causado pela longínqua inoculação dos alucinógenos. Boa parte do soro infecto permaneceu acrisolado em bolhas, sem se misturar ao néctar em circulação pelas fibras venosas do fabuloso dragão. Porém, à medida que estouravam, os delírios perturbadores se intensificavam, aniquilando o fogo interior da razão e do ânimo verd’ourados… Manifestavam-se as contra indicações do tratamento iniciado em 1988, desafiando a imunologia. Os pulmões se ressentiam de oxigênio, que escapavam por grandes respiradouros artificiais abertos pela dívida pública.

De 2001 a 2003, exames laboratoriais da taxa do PIB mostraram que o dragão teve crescimento médio de 1,7%. Um índice pífio para quem parecia esbanjar saúde; mas agora ninguém se deixava enganar. Sofria de aguda e persistente distonia mental. O dragão, tomado de uma fome insaciável, devorava as próprias asas!

Por um ato de misericórdia, puseram uma enciclopédia de medicina ao alcance dos olhos flamejantes do escamoso irado, de modo que pudesse conhecer melhor sua mazela. Nos seus lampejos de lucidez, teve conhecimento que aquela fome, filha da alucinação, era conhecida por uma expressão técnica: “juros da dívida pública”. Quanto às membranas que representavam sua esperança de voar, poderia chamá-las de “Setor”, a esquerda, e de “Privado”, a direita. Percebeu, enfim, que sua organização física era comparável a uma exuberante engrenagem que consomia litros de combustível, mas não passava de uma engenhoca emperrada.

De 1970 a 1993, o imenso lagarto se alimentava com taxas calóricas, de tributos de toda espécie, de 25% em média. A partir de 1994 sua gana voraz subiu: 34,1% em 2001, 35,84% em 2002. Sem encontrar alimento bastante, fez de suas asas, aquelas que lhe fariam voar, a refeição predileta.

Portadoras de certa autonomia, as asas ainda ousam discordar das ordens da criatura insana. Crescem, mesmo sabendo que quanto mais avultam mais seria abocanhadas. Há episódios em que o portentoso animal, após investir contra seus braços de ave, recompõe-se da loucura e cospe descontos de IPI. Tais momentos são raros; a situação se agrava quando até mesmo a parte previdenciária da sua cauda é tratada como fast food

Senhores do seu destino, os membros superiores são resistentes e hábeis. Sua musculatura é poderosa e se entrelaça à estrutura óssea nas proximidades da articulação designada por “instituições financeiras”. Seus tecidos são amplamente organizados, formados por filamentos dispostos com simetria, selados por uma coesão eficiente, impedindo a intromissão do surto virótico ou bacteriano hospedado na enorme constituição física do dragão.

Nessa região, a melhor terapia é baseada na prevenção. Adotam-se procedimentos que a tornam o centro de forças habilitado às guinadas para o alto, o seu grande objetivo. Moderam-se os ímpetos e desvarios dos demais órgãos e, em lugar de cederem às tentações de crescimento desordenado, as células sadias, especialmente as “instituições financeiras”, permanecem atentas a seu papel, a requerer equilíbrio e prudência, trabalho e comedimento, força e leveza…

O dragão persevera fora de si e vê nas próprias asas suas arqui-inimigas e estende suas mandíbulas sobre elas, recreando-se com cardápios, também chamados de rankings, em que os sonhos de crescimento e de voo espetacular são relacionados em desprezíveis catálogos de órgãos de defesa do consumidor ou de esferas judiciais…

A saga segue seu curso indeterminado.

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