Mar Vermelho
Uma matéria da Revista Planeta, de fevereiro de 2013, com o mesmo título reproduzido neste post, consumiu por instantes minha capacidade de discernir. Para acessar a edição virtual da revista, clique aqui, e você poderá se admirar com uma tradição viking que aportou às ilhas dinamarquesas de Faroe. Aliás, a denominação Faroe ― de Færeyjar ― que significa ovelha no dialeto local, poderia ser repensada. Se ainda existissem os animais da lã felpuda que habitavam a região ― pois já estão extintos ―, eles não seriam páreos para outra espécie de seres que atraem a atenção dos residentes no arquipélago, e também de ambientalistas de todo o mundo.
Isso porque, no frio da primavera de Faroe, acontece o Grind, uma prática ancestral em que centenas de baleias, baleias-piloto, perdem o controle de suas vidas, sendo mortas em uma caçada brutal que mobiliza a população. Nessa época os locais vivem dias de pescadores. Após dezenas de embarcações cercarem as baleias até fazê-las encalhar à beira das praias, o povo, empunhando facões chamados de grindaknívur, transforma o lugar, a céu aberto, num abatedouro público de chocar. Em segundos, aplica-se a técnica do corte na nuca do animal indefeso, há um violento esguicho de sangue e o mar se embebe de um rubro abundante…
Arrastada até a areia por grandes ganchos, em breve a carne escura, de sabor intenso, estará acondicionada nas dispensas domésticas; o óleo que lhe for extraído ainda poderá servir de combustível, lubrificante ou insumo para a fabricação de sabão. E a matança em festa, regulada pelo governo desde 1938, ameaça com o risco de extinção o seleto clã de animais, privilegiados pela mãe natureza face a proeza de viverem submersos e ainda saborearem o farto, doce e terno leite que flui de suas progenitoras.
No entanto, desde o dia 18 de dezembro de 1987, as baleias, botos e golfinhos, ágeis e habilidosos, inteligentes e leais, mamíferos e marinhos, estão a salvo do “faroeste dos faroenses” em mares, lagos e rios brasileiros. A Lei 7.643 não apenas proibiu a pesca, como também “qualquer forma de molestamento intencional, de toda espécie de cetáceo nas águas jurisdicionais brasileiras”:
Art. 1º Fica proibida a pesca, ou qualquer forma de molestamento intencional, de toda espécie de cetáceo nas águas jurisdicionais brasileiras.
Art. 2º A infração ao disposto nesta lei será punida com a pena de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão e multa de 50 (cinqüenta) a 100 (cem) Obrigações do Tesouro Nacional – OTN, com perda da embarcação em favor da União, em caso de reincidência.
Art. 3º O Poder Executivo regulamentará esta lei no prazo de 60 (sessenta) dias, contados de sua publicação.
Art. 4º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 5º Revogam-se as disposições em contrário.
Por aqui, nem pensem em molestar os cetáceos! Porém, segundo números de 2012, apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, dizimamos por segundo, no Brasil, um boi, um porco e 166 frangos, mantidos em cruéis condições de cativeiro, à espera do dia do extermínio.
Em Faroe acontece o abate anual, coletivo, às claras. Por aqui, ocorre uma carnificina diária, disfarçada, encoberta pela força e poderio econômico do predador humano. Escapar da volúpia lucrativa do homem selvagem torna-se para os bichos uma façanha cujo sucesso depende da camaradagem do próprio algoz, que se converte em ativista e resgata 200 cães da raça Beagle de um laboratório de testes…
Choca a espetacularização da matança. A carnificina de Faroe diverte pela forma. As touradas também revelam a natureza assassina e soberba do homem. E por aí vai.
Temos a imagem do Brasil como um grande bolsão de paradoxos, não é mesmo, Fernando?! Parece que todos somos meninas, mas vivenciamos um complexo de Édipo. Temos um grande amor pelos símbolos nacionais, mas lembramos da história apenas para lamentar. Adoramos a justiça; o dever nos incomoda. Acolhemos alienígenas; vizinhos nos deixam ranzinzas. Apontamos o dedo em riste contra o autoritarismo internacional; no mesmo instante, estalam sob os nossos pés os ossos da classe terminal. Na primeira pessoa do plural conjugamos o verbo da responsabilidade; estou sozinho, obrigado, quando o assunto é obter verba com exclusividade. Enfim, queremos crescer, mas nos contentamos com pulinhos…
Quando perguntaram ao milionário americano Warren Buffet se ele acreditava na teoria da luta de classes, ele respondeu que sim e que “eles” (os ricos) estavam vencendo. Aqui, não é bem uma luta de classes, mas uma luta de tribos. O paradoxo humano fica evidente na luta pelo poder. Apesar de sermos todos humanos (mas, é claro – que besteira), somos complexos e divididos em grupos, pelos interesses. No caso da lei brasileira que protege os peixes, venceram, por enquanto, os ambientalistas e perderam (por enquanto) os pescadores. E assim continua caminhando a humanidade.
Lembro de alguém que assim dizia: “…e o salário ó.” “pobre tem que morrer.” E também tinha um outro, senão o mesmo, que falava: “me engana que eu gosto.” Vivemos mesmo num país de Alice. O país do faz de conta. O país das mentiras. Já nos adaptamos muito bem nesse cenário de grandes paspalhos que somos.